3.9.08

Aurélia de Souza ou um jogo de máscaras

«O que é o conhecimento? Uma interpretação, um conferir sentido, mas nunca uma "explicação"; na maior parte dos casos é uma interpretação nova de uma interpretação antiga que se tornou ininteligível e que já não passa de um sinal.», Nietzsche.


Nascida na cidade de Valparaíso, no Chile, em 1866, de uma família da burguesia endinheirada, Aurélia de Souza — que é a quarta de seis irmãs e um irmão do primeiro casamento de sua mãe, vindo a nascer mais um rapaz de um segundo casamento (tinha ela, então, 8 anos) — vai viver aos 3 anos para a Quinta da China.

Torna-se desde já interessante reter dois aspectos que irão marcar a vida e, sobretudo, a obra da pintora: por um lado a casa, não só nas suas marcas eminentemente femininas, mas também na multiplicidade de olhares que permite ter sobre o Douro, visto das margens do Porto, ali pelas bandas do Freixo; por outro lado, apesar das figuras do pai, do padrasto e dos dois irmãos, a figura tutelar da casa (melhor: aquela que assume esse estatuto e papel) é sempre a mãe — já que como companheira de aventuras em torno da pintura tem a sua irmã mais nova, Sofia.

Com uma educação em que estiveram presentes, seguramente no recato da casa, quer o saber tocar piano quer o falar francês, teve ainda lições de desenho e pintura. Em 1893 matricula-se, com a sua irmã Sofia, na aula de Desenho Histórico da, então assim chamada, Academia de Belas-Artes do Porto, começando a expôr aí os seus trabalhos no fim de cada ano lectivo e, também, em certames promovidos no Ateneu Comercial do Porto por António José da Costa, Marques de Oliveira e Júlio Costa. Três anos mais tarde matricula-se no curso de Pintura Histórica, dirigido justamente por Marques de Oliveira na Academia de Belas-Artes do Porto. Entretanto, deixando o curso inacabado (ainda chega a matricular-se no 4º ano), parte para Paris, onde permanece durante três anos (frequenta aí, na Academia Julien, os cursos de J. P. Laurens e B. Constant), regressando depois a Portugal com a sua irmã Sofia, que entretanto se lhe juntara, não sem antes viajarem por Bruxelas, Antuérpia, Berlim, Roma, Florença, Veneza, Madrid, Sevilha. Uma vez em Portugal, colabora com ilustrações em revistas e livros, participa regularmente nas exposições da Sociedade de Belas-Artes do Porto e Lisboa e nas galerias da Misericórdia e do Palácio de Cristal. Morre em 1922, com 55 anos, na Quinta da China.

Que memórias da Europa, dessa Europa mais entrevista que vivida, terão povoado a casa onde Aurélia de Souza quase sempre viveu?

Em Portugal o Rotativismo político tinha-se instalado por alturas do nascimento da pintora, e ela vai receber, aliás, pelo menos os ecos da queda do regime monárquico constitucional e da implantação da República. Ainda em Portugal a geração de 70, a de «Os Vencidos da Vida» (Eça, Antero, Oliveira Martins, Ramalho, entre outros) promove as Conferências democráticas no Casino Lisbonense (1871), onde se pode ler no programa impresso distribuído para anunciar a sua realização: «Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna; Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa».

Mas, e na Europa, o que se passava, afinal, com «a humanidade civilizada»? Por um lado, o peso do socialismo utópico de Proudhon, que há-de vir, através de uma teia complicada e heterodoxa, a desembocar em Marx. Por outro lado, o positivismo de Comte e, em especial, a «Introdução ao Estudo da Medicina Experimental» (1865) de Claude Bernard vão fazer com que a ciência mude de paradigma (curiosamente é neste paradigma que se situam alguns dos primeiros trabalhos de Freud, em particular os sobre neurofisiologia), assumindo uma matriz determinística que a investigação e argumentação teórica de Plank, Einstein e Heisenberg irão, no princípio do século, destronar — abrindo caminho a um novo paradigma onde o protagonismo é desempenhado, lato senso, pelo indeterminismo e pelo probabilismo, consequência inevitável da deslocação de um olhar macroscópico para um olhar microscópico. Por fim, com Nietzsche passa-se a conviver com o sentido da tragédia (ou será, antes, com a tragédia do sentido?) que é matriz do humano quando desapossado do peso equívoco dos deuses ou de Deus. Em resumo: «A sociedade dominante — a da Europa ocidental — organiza-se doravante à volta dos princípios da ciência e do progresso industrial. Ao mesmo tempo são aperfeiçoadas as doutrinas que vão substituir a ordem espiritual. Efectivamente, os poderes já não podem contar com as religiões, de tal forma elas são caducas quando tradicionalistas e perigosas quando inovadoras», escreve François Chatelêt, para acrescentar em torno de Nietzsche: « Anuncia-se decididamente que existem dois campos: o dos providos da cultura, dos diletantes, dos fabricantes de doutrinas, dos idealistas, dos adeptos de qualquer poder (desde que este se mantenha firme); e o dos Filhos da Terra, dos amantes do corpo, dos partidários da letra contra o espírito, do texto contra a interpretação». E, com extrema argúcia, deixa no ar esta questão: «No fundo, a interrogação: Hegel ou Marx?, desdobra-se e desloca-se: Spencer [filósofo anglo-saxónico do século XIX que defende, no plano moral, um "utilitarismo racional" caracterizado pelo optimismo e uma doutrina social orientada para uma apologia do capitalismo liberal, que permite a livre satisfação das aspirações individuais] ou Nietzsche?»; para, logo de seguida, reinserir estas questões num eixo que (d)enuncia, afinal, a visibilidade da institucionalização de «uma determinada filosofia»: «Doravante, todo o mundo está presente no que respeita à cultura ["etapas da colonização, agitações de povos subjugados e até mesmo a fundação de associações de trabalhadores"]. Hegel pressentia este futuro: todavia, a sua sistemática histórica permitia-lhe minimizar, relegar para o passado, o "bárbaro", o "pagão", aquilo que não pertencesse à área cultural privilegiada; não concebia os acontecimentos e os povos da Ásia, da América, da África senão como momentos preparatórios, em diferentes graus, para a eclosão do Espírito, que apenas podia ter lugar, sob os auspícios das religiões reveladas, na bacia do Mediterrâneo e depois, no espaço europeu... Tais simplificações já não são possíveis: a geografia começa a desforrar-se da história. Torturado, explorado, reduzido à subserviência, o outro da Europa entra na liça...». Tal como, com Freud, entra o outro do eu: o inconsciente.

É este o esboço do ambiente cultural que domina a segunda metade de oitocentos e a primeira década de novecentos. Um ambiente simultaneamente desassossegado e cosmopolita. Pelo menos na Europa. Porque aqui em Portugal, uma certa Lisboa posta de lado, ao cosmopolitismo e à joie de vivre sobrepunha-se uma moral repressiva, ultra-conservadora, em sintonia com os cânones rurais.

Se no campo da literatura (no imediato a portuguesa, mas não só), Aurélia de Souza foi próxima no tempo de autores do Romantismo, do Realismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, do Saudosismo, da «Renascença Portuguesa» ou da geração de «Orpheu» (podia-se especular sobre uma certa visibilidade de Cesário Verde e de Pascoaes), no campo das artes plásticas inscreve-se entre os naturalistas (Silva Porto, Marques de Oliveira, Henrique Pousão, Malhoa e Columbano Bordalo Pinheiro — todos membros do Grupo do Leão, que o próprio Columbano retratou em 1885). À escola naturalista anda aliado um acontecimento importante: em 1865 começaram a ser concedidas pensões oficiais para a frequência da École des Beaux-Arts de Paris que substituía Roma — viagem obrigatória, ainda, mas só no fim da bolsa. Acontece que oito anos depois são contemplados, por concurso, dois pintores formados pela Academia do Porto: Silva Porto e Marques de Oliveira. Nos tempos deixados livres pelas obrigações da Escola de Paris, tomaram contacto com os artistas naturalistas de Barbizon. Ora, quando regressam à pátria, e ao ficarem responsáveis pela Academia de Lisboa e Porto, respectivamente, vão ser os grandes introdutores do naturalismo em Portugal.

Apesar de se inserir no naturalismo, até pelo magistério de Marques de Oliveira, a obra de Aurélia de Souza vive de uma ocasionalidade estética (por aí passam reflexos das estéticas românticas, simbolistas, impressionistas, expressionistas, da Arte Nova ou, até, um certo peso cultural do Japão — por vezes o traço faz lembrar a linhagem do haiku, poema onde a meditação, que atravessa dois ou três versos, assume uma dimensão cósmica e originária). E se, por um lado, essa ocasionalidade pode ser fruto das suas viagens antes do regresso a Portugal — mas, também, de uma postura intelectual onde a vertigem ia mais depressa para o ver do que para o saber (sintomaticamente, é assumida por ela a seguinte asserção: «Ce n'est pas en savant c'est en passant qu'il faut regarder») — por outro lado, todo o peso matricial da casa da Quinta da China é determinante na sua obra.

Aliás, é justamente do vai-vém entre essa abstracção que é o olhar e a efectiva clausura (decorrente de uma austeridade feroz ou, pelo contrário, aí levando?) de quem olha as paisagens e ambientes que nasce a obra de Aurélia de Souza. Não é por acaso que duas cenas da sua infância marcaram a pintora: uma, foi tentar desesperadamente o choro para ver a cor das lágrimas; outra, de tão absorta no perfil das mãos e das sombras que elas declinavam, esquecer-se de tocar as teclas do piano.

Como se prova, a questão do olhar (um olhar introspectivo — mesmo quando mascarado de extroversão, ele mais não é do que um olhar introspectivo e narcísico) é determinante na obra de Aurélia de Souza: seja no olhar sobre si (série de «Auto-retratos»), no olhar debruçado sobre o exterior (paisagens), no olhar para dentro do perímetro da casa (quotidianos).

No primeiro caso, o dos «Auto-retratos» (destaque para o «Auto-retrato» com o casaco vermelho), há sempre uma dicotomia entre o fundo da mancha pictórica (a escuridão dos amarelos, o entrecruzar sombrio e vegetal dos cinzas e verdes) e o rosto; mas, também, entre o nível do olhar (um olhar austero, fixo num indecifrável ponto do horizonte), o plano carnal do rosto e, por fim, a mancha nítida de um corpo adivinhado. Como se todo um jogo de duplicidade em torno do masculino/feminino atravessasse estas obras (veja-se, por exemplo, como Aurélia se traveste, nesse caso em corpo inteiro, de Santo António ou de Arlequim), reforçando o seu peso narcísico. Já, por exemplo, no «Retrato da Mãe da Artista» há um olhar magoado, de luto, mas, ao mesmo tempo, tranquilamente feminino — aliás, repita-se, a obra de Aurélia de Souza não contempla curiosamente qualquer homem, apenas o universo, visível ou adivinhado, da sensibilidade feminina.

Poder-se-ia falar também de sensibilidade feminina a respeito das paisagens da pintora. Paisagens turbulentas, onde há sempre uma demarcação entre o território da casa e aquilo que esta deixa entrever (caso de «Na Varanda» ou de «Vista do Douro»). E em que «Jarros na Borda de Uma Taça» é emblemático: pelo aspecto carnal da corola e pela nitidez dos estames, esta tela evoca alguns auto-retratos, em particular aquele em que a pintora se traveste de Arlequim; mas há, também aqui, um efeito de Narciso: no reflexo da água, os estames perdem-se nos contornos omnipresentes das corolas.

É ainda neste universo feminino, matricial que se situam as telas sobre o quotidiano. E, sublinhe-se, é justamente uma tela da série das paisagens («Outono—Porto») que para aí abre o caminho através de um desenvolvimento em espiral, resguardando uma vez mais o espaço — tal como se pode verificar, por exemplo, em «À Sombra» (onde a homologia na definição do espaço é reforçada por oposições lumínicas e de figuras). Mas, nesta série duas telas merecem atenção redobrada: «Interior — Senhora à Janela» e «No Atelier». Em «Interior — Senhora à Janela», uma mulher parece olhar para fora — a cortina da janela entreaberta ao de leve; só que, de facto, a postura do corpo (a cabeça ligeiramente inclinada sobre o ombro, defendida pela mão, enquanto a outra está abandonada no parapeito dessa janela fechada) mais releva do alheamento, apesar da vida que acontece lá fora e que o olhar parece incapaz de suster. Em «No Atelier», por entre telas esbatidas pelos castanhos, prestes a serem apenas sombra, destaca-se uma paisagem com um céu de um azul limpo de tempestades e um vulto de mulher — a própria pintora — dobrado sobre uma mesa, escondendo ao espectador o sentimento adivinhado de desespero. Há, aqui, uma matricialidade — culturalmente decadentista e finissecular — que se impõe desmesuradamente, a ponto de a luz se tornar em sombra, a paisagem em fixação pictórica, o olhar em delírio, nada mais restando do que resguardar no desassossego da vida e do atelier um culto narcísico exasperado ferido de morte. Eis Aurélia de Souza: as máscaras foram-na habitando sempre no limite de si própria — e agora é um corpo sem rosto que nos fixa no mais profundo de si.

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Enquanto penso num texto sobre a pintura de Aurélia de Souza e o modernismo europeu, fui reler este texto meu - in A Razão, revista trimestral, Julho/Agosto/Setembro, ano 5, n.º 55, 1995.