29.9.14

Depois da queda

Com o fim da guerra fria, que foi a queda do muro de Berlim em 1989, começou o século XXI, como já o escrevi algures - tal como o século XX começou em 1914, início da primeira guerra mundial (no que estou acompanhado por Vitorino Nemésio, na sua tese de doutoramento sobra a mocidade de Herculano, de 1933, ou por Alain Badiou, por exemplo). E com a queda do muro de Berlim começou-se a pensar a "Europa", que, aliás, em plena guerra fria Jean Monet tinha pensado.

Em contrapartida, o século XVIII, pela voz de Kant, tinha dito uma coisa simples: só a força das armas implica a paz. Foi, aliás, a força das armas que traçou a "Europa" reinante e as suas colónias até 1918, fim da primeira guerra mundial.

Todavia, o fim da guerra fria implicava forçosamente o renascimento dos vários nacionalismos europeus, com as suas lutas tribais. E, além disso, para lá da "Europa", a potência unipolar emergente, os EUA, ao quererem, pretensamente, impôr o modelo democrático a regimes ditatoriais, muitos alicerçados na religião, armando aliados de ocasião que se tornariam a breve trecho inimigos (o que já vinha dos idos da guerra fria), abriu a porta a fenómenos como o islamismo extremista.

Não fora isto, um além Europa a reconstruir um novo mapa geopolítico, a "Europa" pretensamente unida, também a reconstruir um novo mapa geopolítico, rebentou com o modelo de democracia representativa nos países da periferia - caso de Portugal, hipotecado desde oitocentos, e sonhando, por vezes, com a união ibérica, a ponto de algumas luminárias pensarem, até, invadir a Espanha, como conta Oliveira Martins no Portugal contemporâneo (1881).

Entretanto, renascida das cinzas do holocausto, a Alemanha tornou-se o fiel da balança na "Europa", isto é, uma vez reunificada, considerou-se o mentor "europeu". Conseguiu-o? E os EUA, conseguiram ser o mentor mundial?

18.9.14

Portugal contemporâneo


Portugal contemporâneo (1881) de Oliveira Martins completa, por assim dizer, a sua História de Portugal (1879) - indo de 1826-28, «a carta constitucional», a 1851-68, «a regeneração», passando respectivamente pelo «reinado de D. Miguel» (1828-32), pela «guerra civil» (1832-34), pela «anarquia liberal» (1834-39) e pelo «cartismo» (1839-51), tendo, aliás, sido considerado por Eça de Queirós o seu melhor livro.

Todavia, o que me interessa reter aqui são dois planos breves. Por um lado, a similitude com o que se passa hoje em dia no país, e nas relações do país com a "Europa". Por outro lado, o modo como Oliveira Martins faz o esboço das personagens - umas mais vagas e difusas, outras mais detalhadas e questionadas. Ora, justamente este último plano leva a que o II vol. seja, por vezes, mais empastelado do que o I (este mais próximo da História de Portugal, uma narrativa de heróis trágicos do destino português). Quanto ao primeiro plano, esta afirmação do II vol. ainda vale por si:

«Nenhum sistema político se presta mais à tirania e à burla do que o sistema aritmético do governo das maiorias».

Um outro plano importante é o breve estudo das ideias políticas de Herculano e das suas contradições internas: o conflito entre o individualismo de Herculano (um anarquismo individualista, como se lhe refere no I vol., mas um anarquismo individualista baseado na tradição da pátria) e o colectivo, a sociedade, com cujos valores (a prática, o utilitarismo, etc.) estava em rota de colisão.  É sintomático este texto de Herculano citado no II vol.:

«A história política é uma série de desconchavos, de torpezas, de inépcias, de incoerências, ligadas por um pensamento constante - o de se enriquecerem os chefes de partido [e os seus correligionários, digo eu]. Ideias, não se encontram em toda essa história (...). Hoje achá-los-eis progressistas, amanhã reaccionários; hoje conservadores, amanhã reformadores: olhai, porém, com atenção e encontrá-los-eis sempre nulos.

Eis Herculano, o individualismo de Herculano, certeiro na altura, certeiro agora. Como certeiro na altura e certeiro agora, mas visto do lado do colectivo, da sociedade, este texto de Garrett, do Garrett das Viagens na minha terra (início da publicação em 1843, na Revista Universal Lisbonense):

«E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta para produzir um rico?».

Daí, para o Garrett das Viagens, ser o mundo «uma vasta Barataria em que domina el-rei Sancho». O que Oliveira Martins corrige assim: 

«Portugal é uma vasta Barataria em que reina (liberalmente) el-rei Sancho».

Uma nota final: seria profícuo, mas isso fica para outra ocasião, aproximar o romantismo de Herculano do saudosismo de Pascoaes no vector da tradição da pátria (caso, em Pascoaes, da raça lusíada). E constatar, neste ponto, quanto Pascoaes é um discípulo de Herculano - e de Oliveira Martins (a lhaneza de carácter, por exemplo).