13.1.15

O alfaiate


O alfaiate, Il Tagliapanni, 1565-1570, de Giovanni Battista Moroni, pertença da National Gallery, Londres, é uma daquelas obras que prende a atenção. Há, aqui, todas as regras do retrato, tal como concebido até setecentos. A inclinação da cabeça e o olhar atravessam a pintura numa diagonal que o vértice de cores do fundo da tela acentua: um cinzento carregado, quase negro, cria o lado de um vértice que ocupa o lado direito, onde um cinzento mais claro vai gradualmente escurecendo de cima para baixo, sem atingir o tom de penumbra do lado esquerdo. Repare-se, ainda, como a cabeça da figura está no lado mais claro, enquanto o corpo, também na mesma diagonal criada pela cabeça e pelo olhar, como que irrompe do lado mais escuro - veja-se a mancha de sombra no ombro do lado direito, que vai descendo pela manga. Depois, as mãos. Como desde Caravaggio a Courbet, uma é passiva e a outra activa. A mão do lado direito, ainda que segurando o tecido, o negro do tecido, quase parece em abandono. Pelo contrário, a outra mão, contraída na tesoura aberta, indica que toda a pintura é um gesto em suspenso na outra diagonal que a mesa instaura - a diagonal que, por assim dizer, fecha a diagonal instituída pela cabeça e pelo olhar, a diagonal que com a diagonal do braço direito cria um centro. Tudo é, assim, interior, interior à pintura: a mesa de trabalho, as mãos, o olhar. Ainda que este nos seja dirigido...

9.1.15

O pintassilgo


O pintassilgo, de Carel Fabritius (1622-1654), datado do último ano da vida do pintor, e pertença do Mauritshuis, Holanda, é a única obra que restou de uma explosão no atelier do pintor, em Delft, e que o matou - como o conta Donna Tartt no romance homónimo. 

Todavia, não é isto o que me interessa. Antes de mais, na vanitas, na natureza-morta, um género de pintura em que se pode inserir O pintassilgo, o tema da reclusão é inusual. Porque é disso mesmo que se trata. Uma ave acorrentada - cuja figura melancólica do voo está adiada para sempre. Ou seja: ainda que vivo, o pintassilgo é, de facto, uma natureza-morta. O pintassilgo é um morto-vivo - como a enorme mancha de sombra na parede confirma, a ponto de confundir, melhor, identificar a ave e o poleiro, a ave e o cativeiro.

Não perdendo a pintura de vista (caso da postura da cabeça da ave, como nos retratos e auto-retratos de figuras humanas até finais de setecentos; caso das manchas de óleo, algumas feitas com espátula, bem marcadas nas asas, sinal da tal figura melancólica do voo adiado; caso da argola e da corrente que  prende o pintassilgo na pata, num plano simétrico ao da inclinação da figura da ave; caso das grades do poleiro, no mesmo tom, ainda que mais vivo, do corpo da ave; caso do cinzento neutro, um cinzento de morte, do poleiro, e que, por isso mesmo, se impõe ao olhar do espectador em contraponto com um bebedouro esfumado, difuso, como se a ave estivesse morta, melhor, como se a ave fosse um animal empalhado; caso da figura da ave, como que querendo sair do cativeiro e, ao mesmo tempo, resignada à sua reclusão; caso do fundo da pintura, uma espécie de parede bolorenta), creio que O pintassilgo é a imagem deslumbrante e terrífica do homem e da sua historicidade, a que nos habita e a que nos habitou. Ou, se preferirmos, é nos dias de hoje, como o terá sido na altura num plano político diverso (a assinatura do pintor parece dizer que se trata de um auto-retrato), é nos dias de hoje, dizia, a imagem deslumbrante e terrífica da cidadania e da democracia.