17.9.21

Os neo-neo-ismos de XXI

O século XXI é o século dos ismos enquanto neo-neo. O que significa que há sempre um elástico imaginário que prende passado e futuro - apesar de o século XXI viver apenas o presente. Mas, este presente, este ser agora, este ser instante, apesar de ser uma aparente anulação do tempo, é apenas a sua suspensão. Donde, o século XXI é a suspensão do tempo - porque o a-vir ainda é tão-só a-vir, é o ainda-não-do-já (Heidegger). É a suspensão de uma comunidade a-vir.

Daí o século XXI ser já não o declínio do Ocidente (Spengler), mas sua morte, a morte do Ocidente - que, verdade seja dita, começou com a primeira guerra mundial (1914-18). Todavia, aí, ainda havia um projecto de vida, nem que fosse suicidário. Muitos foram, aliás, os artistas que se alistaram para viver no limite a morte. E poucos os que sobreviveram. 

Como muitos foram os movimentos artísticos de vanguarda que percorreram o século XX: das vanguardas russas ao neo-plasticismo, dos expressionismos a dada e ao surrealismo, da pop à arte povera e ao conceptualismo. A partir de 1989, ou até um pouco mais cedo, a partir dos anos 1970, começam os movimentos neo-: neo-pop, neo-expressionismo, neo-geo, etc.

O século XXI foi ao encontro da body art e do vídeo, movimentos do outro século. E transformou o corpo em constante performance, contagiou-o. Contágio e corpo são, aliás, as palavras do século XXI. No limite, a tecnociência: a engenharia genética e a espacial.

De facto, contágio e corpo atravessam a primeira guerra mundial (1914-18) - caso dos gases usados em combate pela Alemanha e pela Áustria-Hungria. E a tecnociência atinge um auge, na Alemanha da segunda guerra mundial (1939-45), ainda que antes tenha havido um movimento de sentido contrário com o lema terra e sangue - de que o nazismo se apropriou. Mas, a tecnociência também atinge um auge em Hiroshima e Nagasaki.

Com a contestação estudantil dos anos 1960 (a favor do corpo e contra a guerra do Vietname), com os movimentos de emancipação dos negros (mais uma vez o corpo), cidadania e corpo dão-se as mãos. Há o direito à cidadania. Há o direito ao corpo. Entretanto, por esta altura, uma exposição de Mapplethorpe foi cancelada num museu norte-americano, logo depois de abrir.

Por fim, neste século, o XXI, o corpo atinge um significado quase absoluto e a cidadania é usurpada pelas redes sociais, pela demagogia, pela mentira, pela violência. É o caso, por exemplo, dos movimentos negacionistas. E a democracia, se é que existe, é um mero fantasma, (...) a tale / told by a idiot full of sound and fury, / Signifying nothing. (Shakespeare, Macbeth).


7.6.21

Nuno Júdice & Daniel Jonas: words, words, words...

Deixei de ler a poesia de Nuno Júdice depois dos poemas de Cartografia de emoções (2002). Porquê? Tratava-se de repetir o já dito - algo muito comum na poesia portuguesa e que se vê a olho nu nas recolhas do ano tal até ao ano tal ou nas obras incompletas, inacabadas ou o diabo que as carregue. Por isso, foi a medo que comprei Regresso a um cenário campestre (2020), que de cenário campestre tem o último poema. O resto é a erótica, vinda do renascimento e sem soluções inovadoras, em torno da mulher amada e a questão sobre o tempo: « (...) como se o tempo / não mudasse o mundo e a própria forma / como o vemos» (p. 57) - verdadeiro achado de La Palisse. Apesar de tudo, dois poemas chamaram-me a atenção: os das pp. 56 e 86. E fugi de "coisas" (4 ou 5) como O problema da justiça  (p. 78).

 

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Daniel Jonas leu o poema Dispersão do livro homónimo de Mário de Sá-Carneiro, que começa assim: «Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim». E estoutro de Indícios de ouro: «Eu não sou eu nem o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte do tédio / Que vai de mim para o Outro». E, ecoando Maia-Pinto (por exemplo, p. 37), Sena (p. 91 sg.), a poesia inglesa, constrói Cães de chuva (2021). Onde diz: « (...) Um poema é / o fim depois do fim / após a morte, antes da terra.» (p. 36) - que é um des-ocultar a origem das origens. Mas, depois: « (...) Alguém terá vivido a minha ausência. (...) dum mundo onde não vivo (...)» (p. 98). Mas, antes, p. 37: «É triste sermos nós até para nós». Ou: «É tudo triste em vez de ser só ser». Então, onde ficamos? Na origem das origens - onde se desvela o ser? Diante de um mundo onde (o eu, o sujeito) não vive, isto é, não é diante da morte, mas é na morte, o que é triste? Eis a re-visitação do pessoano fingimento. Words, words, words...


26.5.21

Uma poética do esfacelamento

Antes de O vale da estranheza (2021), Catarina Costa publicou Essas alegrias violentas (2020), ambos uma edição da Companhia das Ilhas. Aí, partindo de uma epígrafe de Barthes, tirada de Fragments d'un discours amoureux, acerca da luta (em grego: polemos) entre o amado-não-amado e o amante-que-ama-o-amado, CC constrói núcleos temáticos sobre o tempo, o tédio, a morte, o amor - temas constantes de puro esfacelamento (esfacelar é, eventualmente, preferível a luta, a polemos) na dobra do poema. Aliás, esse esfacelamento, que mais não é do que eco (lembremos Narciso, o amador e o amado) efémero e tardio («a minha réplica às tuas palavras esgota-se no eco», p. 34), vai-se agudizando ao longo do livro: da p. 11, por exemplo, à p. 14, à p. 23, à p. 27, à p. 33, à p. 40, às pp. 48 («e já não sabemos sequer qual de nós seria o consolador / e qual seria o consolado») e 49 («e por mais que galopem / nunca chegarão a pisar a terra a partir da qual / já não tenham de superar mais provas, / onde possam repousar por fim / na imanência da sua condição, / dormindo de pé com as quatro patas / ancoradas ao fundo do solo que lhes pertence»). E se O vale da estranheza é, aparentemente, um livro de fragmentos (para Walter Benjamin o fragmento destapa a morte), Essas alegrias violentas já tinham aberto o caminho. 

Todavia, o caminho não foi integralmente aproveitado e, afinal, os fragmentos não são fragmentos - mas pequenos poemas em prosa, como em Baudelaire. CC, em O vale da estranheza, retoma temas que vêm de trás: o tema da máscara, da persona, da marioneta (por onde anda o Monsieur Teste de Valéry, o Woyzeck de Büchner), o tema da doença capaz de alterar a percepção do corpo e do mundo. Enfim, estratégias outras para o confronto entre o eu e o tu (o consolador e o consolado), com ecos de Rimbaud: «Je suis un Autre».