26.10.23

4 textos

 Da(s) liturgia(s)

A liturgia da primeira comunhão, dita particular. O altar-mor, o genuflexório. A missa, então em latim, hesitante entre ofício cantante e lição das trevas, indicia o apelo confesso do oficiante à crença - ainda que difusa, já tida como inaugurante. Ou seja: de um lado, as portas da lei, como em O processo de Kafka, o crente, o crente inaugural, tal Josef K, o olhar enevoado, atónito; do outro, o crente, o crente inaugural, o olhar enevoado, atónito, descobre-se como uma vida na morte. Encontra-se, assim, diante do absurdo da inocência - ou da inocência enquanto absurdo - e da morte.

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Do totem

Melancholia, de Lars von Trier, dá uma resposta possível a esta questão: se um cometa ficar na rota da terra, o que fazer? Resposta: re-construindo - espécie do nietzscheano eterno retorno do mesmo - um totem, o eixo do cosmos. De facto, para o pensamento mítico há o cosmos e o caos - daí derivam os códigos morais. E quem guarda, quem é o guardião do cosmos, evitando o caos, é o ancião - que, quando o momento chega, dá o seu poder a um herdeiro. Assim o ancião é guardião e, ao dar, dá-se, insere-se no testamento, no testemunho, na dádiva. Por isso, Ailton Krenak fala de "criação poética do futuro" - a partir da tradição guardada pelo ancião. Um a-vir, afinal. E, assim, o totem, sendo imortalidade enquanto plano de imanência dos deuses, suspende o caos. Por outras palavras: enquanto pura manifestação que as marcas puras no corpo convocam, o totem prefigura o ventre materno que nos há-de acolher um dia - depois daquele que nos acolheu no passado. O puro ventre materno de uma sociedade sem estado ou, como dizia Clastres, de uma sociedade contra o estado. 

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Devir-animal

O que é o devir-animal? O devir-animal é manifesto nos antigos caçadores (Deleuze), aqueles que andavam pelos trilhos de montes e tapadas, à beira de riachos, sempre em matilha, isto é, acompanhados por outros caçadores. Mas, a caça implicava outras duas matilhas. Desde logo, a dos cães - podengos, perdigueiros, etc. Depois, dos animais que eram objecto de caça - pombos, coelhos, perdizes, etc. Era a relação entre estas três matilhas que definia o devir-animal. Uma espécie de relação sujeito-objecto - em que a intencionalidade, no sentido husserliano, do conhecer abria para o devir, neste caso devir-animal. Que era, também, um ritual.

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O século de um eu à deriva

Nesta sociedade, herdeira do fim das grandes narrativas, herdeira do pós-modernismo, herdeira de 1989 (queda do muro de Berlim), que, hoje em dia, da democracia só invoca o nome, vive-se centrado no eu - esse fantasma irredutível, porque sendo, agora, a única pertença nossa. Por isso, convocamos outros fantasmas. Onde? Nas redes sociais, em particular. Somos, assim, um espectro diante de outros espectros, um e os outros potenciados pelo ecrã, esse lugar de deriva. Aliás, somos-aí porque influencers de todos os quadrantes (político, ensino, saúde, moda, etc., etc.) são-aí diante de nós, caminham na nossa direcção, entregam-se eventualmente. Somos, pois, além de espectros, espelhos. E pactuamos - possível reflexo das ditaduras que atravessaram o século XX. Ao mesmo tempo, somos racistas e homofóbicos - os de outra cor e de outro género (LGBTQIA+) são rejeitados,  porque fogem a uma pretensa formatação. De resto, somos felizes - ainda que não saibamos o que isto quer dizer. E não o sabemos porque a IA não o consegue explicar.