Num poema de Lições da miragem (Assírio & Alvim, 2024), livro com dedicatória que, sem o citar, remete para Hölderlin - Wem sonst als dir, i. é, A quem mais, a não ser a ti -, e Hölderlin é, aliás, uma das lições marcantes deste livro, ainda que haja uma outra declarada no poema Lição de enamoramento (p. 53): "A partir de uma imagem de Tranströmer", escreve Ricardo Gil Soeiro em itálico. Eis o poema:
«Carruagem da manhã. / Cripta ambulante, / segundo o poeta da primeira neve, / feiticeiro polindo pedras / como luas cheias. / Na floresta de prantos petrificados, / ignotos olhares que acasalam. / Tocam-se duas vidas, / Jamais se incendiando».
Sublinhem-se as linhas de força deste poema: "poeta da primeira neve", sabendo-se que a neve é opaca, escorregadia e queima; "feiticeiro" que transmuta pedras em luas cheias, que se diz serem propiciadoras do aparecimento de fantasmas; "floresta de prantos petrificados", eventualmente pela neve ou pelos fantasmas, que impede que os olhares se incendeiem, apesar de acasalarem para, logo depois, se afastarem. Ou seja: a Lição de enamoramento é a lição das marcas da petrificação, do sol nocturno, da melancolia - tão ao gosto de Baudelaire. Aliás, todas as lições deste livro, i. é, os poemas, vivem de vincadas oposições, caso flagrante de vida/morte, que merece uma citação de Valéry, e que são, para todos os efeitos, correspondências, como no poema homónimo de Baudelaire.
Mas quem é Tranströmer? Tomas Tranströmer (1931-2015) é um dos poetas suecos que foi antologiado por Ana Hatherly e Vasco Graça Moura em 21 poetas suecos (Vega, s/d [eventualmente nos anos 1980]). A primeira de cinco traduções de outros tantos poemas, esta feita por Teresa Salema, é um poema notável, As pedras (p. 137):
«As pedras que lançámos, ouço-as / cair claras como o vidro pelos anos fora. No vale / voam agitados os gestos do momento / gritando de copa para copa, calando-se / ao fino ar desse momento, deslizando / como andorinhas de cume / para cume até alcançarem / os planaltos extremos / ao longo da fronteira da existência. Aí caem / claros como o vidro / os nossos actos / ao encontro apenas do chão / que nós próprios somos».
Independentemente das oposições deste poema de Tranströmer e das oposições dos poemas de Lições da miragem, que são, sublinho, fantasmas de lições dos mais variados temas, uma é comum: a oposição transparência / opacidade, que vidro e chão marcam em As pedras e que encontramos, por exemplo, em Lição autobiográfica (p. 24): «(...) Estes dedos lestos e incógnitos / brincaram com letras de vidro»; ou em Lição de astronomia (p. 14): «(...) E, submisso, concluo: / o devir é um cintilante naufrágio». Por isso, «(...) Perdoa. / É agora que me calo. / Escondido, / onde o meu grito / não me consiga encontrar.» (Lição de alteridade, p. 52).
Resta, ainda, uma questão, uma questão que se desdobra - e a que a epígrafe de Le Clézio parece responder: 1. porquê lições? 2. porquê da miragem? Le Clézio, juntando as duas questões, fala do, cito e traduzo, «movimento frágil e vivo da criação, de que a palavra é de qualquer modo a quintessência do humano, a prece». E Le Clézio anda perto, mas falta ainda algo mais. Se a lição é dar, se é uma dádiva, um, diria Levinas, caminhar ao encontro do Outro, a miragem é o delírio, é a criação de um mundo outro, é um fantasma, esse inalcançável. É isso, pois, a poesia, melhor o poema, cada poema: a criação de um mundo outro que se dá em si mesmo e por si mesmo, que é uma dádiva tingida pelo inalcançável. Daí aquilo que Barthes enunciou nos idos dos anos 1960: a morte do autor. E que se traduz nestes versos, já transcritos acima: «(...) Perdoa. / É agora que me calo. / Escondido, / onde o meu grito / não me consiga encontrar».