7.11.25

Do inalcançável



Num poema de Lições da miragem (Assírio & Alvim, 2024), livro com dedicatória que, sem o citar, remete para Hölderlin - Wem sonst als dir, i. é, A quem mais, a não ser a ti -, e Hölderlin é, aliás, uma das lições marcantes deste livro, ainda que haja uma outra declarada no poema Lição de enamoramento (p. 53): "A partir de uma imagem de Tranströmer", escreve Ricardo Gil Soeiro em itálico. Eis o poema:

«Carruagem da manhã. / Cripta ambulante, / segundo o poeta da primeira neve, / feiticeiro polindo pedras / como luas cheias. / Na floresta de prantos petrificados, / ignotos olhares que acasalam. / Tocam-se duas vidas, / Jamais se incendiando». 

Sublinhem-se as linhas de força deste poema: "poeta da primeira neve", sabendo-se que a neve é opaca, escorregadia e queima; "feiticeiro" que transmuta pedras em luas cheias, que se diz serem propiciadoras do aparecimento de fantasmas; "floresta de prantos petrificados", eventualmente pela neve ou pelos fantasmas, que impede que os olhares se incendeiem, apesar de acasalarem para, logo depois, se afastarem. Ou seja: a Lição de enamoramento é a lição das marcas da petrificação, do sol nocturno, da melancolia - tão ao gosto de Baudelaire. Aliás, todas as lições deste livro, i. é, os poemas, vivem de vincadas oposições, caso flagrante de vida/morte, que merece uma citação de Valéry, e que são, para todos os efeitos, correspondências, como no poema homónimo de Baudelaire. 

Mas quem é Tranströmer? Tomas Tranströmer (1931-2015) é um dos poetas suecos que foi antologiado por Ana Hatherly e Vasco Graça Moura em 21 poetas suecos (Vega, s/d [eventualmente nos anos 1980]). A primeira de cinco traduções de outros tantos poemas, esta feita por Teresa Salema, é um poema notável, As pedras (p. 137): 

«As pedras que lançámos, ouço-as / cair claras como o vidro pelos anos fora. No vale / voam agitados os gestos do momento / gritando de copa para copa, calando-se / ao fino ar desse momento, deslizando / como andorinhas de cume / para cume até alcançarem / os planaltos extremos / ao longo da fronteira da existência. Aí caem / claros como o vidro / os nossos actos / ao encontro apenas do chão / que nós próprios somos».

Independentemente das oposições deste poema de Tranströmer e das oposições dos poemas de Lições da miragem, que são, sublinho, fantasmas de lições dos mais variados temas, uma é comum: a oposição transparência / opacidade, que vidro e chão marcam em As pedras e que encontramos, por exemplo, em Lição autobiográfica (p. 24): «(...) Estes dedos lestos e incógnitos / brincaram com letras de vidro»; ou em Lição de astronomia (p. 14): «(...) E, submisso, concluo: / o devir é um cintilante naufrágio». Por isso, «(...) Perdoa. / É agora que me calo. / Escondido, / onde o meu grito / não me consiga encontrar.» (Lição de alteridade, p. 52).

Resta, ainda, uma questão, uma questão que se desdobra - e a que a epígrafe de Le Clézio parece responder: 1. porquê lições? 2. porquê da miragem? Le Clézio, juntando as duas questões, fala do, cito e traduzo, «movimento frágil e vivo da criação, de que a palavra é de qualquer modo a quintessência  do humano, a prece». E Le Clézio anda perto, mas falta ainda algo mais. Se a lição é dar, se é uma dádiva, um, diria Levinas, caminhar ao encontro do Outro, a miragem é o delírio, é a criação de um mundo outro, é um fantasma, esse inalcançável. É isso, pois, a poesia, melhor o poema, cada poema: a criação de um mundo outro que se dá em si mesmo e por si mesmo, que é uma dádiva tingida pelo inalcançável. Daí aquilo que Barthes enunciou nos idos dos anos 1960: a morte do autor. E que se traduz nestes versos, já transcritos acima: «(...) Perdoa. / É agora que me calo. / Escondido, / onde o meu grito / não me consiga encontrar». 

3.11.25

A voz de Eco


A filosofia de Levinas foi sempre um caminhar ao encontro do Outro. No caso desta antologia de Luís Quintais, uma antologia de três décadas, logo num primeiro texto, aliás um texto em prosa, é referido o papel do eco. Podia ser, partindo do título, A destruição do tempo (Assírio & Alvim, 2025), o papel da imagem reflectida nalgum espelho ocasional, caso de uma réstea de água - mas não, não há aqui Narciso algum, apenas a sua sombra por castigo de uma ninfa, a ninfa das montanhas. Há, sim, um eco - apenas uma voz, como aconteceu mais tarde à ninfa grega das montanhas com este nome, Eco - herança, que foi, do castigo aplicado a Narciso. Melhor: há o eco - a voz de Eco. Daí, a destruição do tempo que os poemas evocam constantemente, em vez de os fixar enquanto destroços, fixa-os enquanto um eco tecido pelas palavras do próprio poema e, também, de poema para poema. O que, enigmaticamente, faz os poemas derivarem de si para o Outro, aquele que segundo Levinas nos justifica e absolve. Neste caso, o poema.