23.7.24

Fuinha

 



Espalha o teu pão  §  sobre a face das águas    §§§
Pois que passem muitos dias  §  de novo o descobrirás 

(Qohélet, XI, 1, trad. Haroldo de Campos)

Pois há o destino dos filhos do homem  §
e o destino do animal  §
e é um o destino  §  para ambos    §§ 
a morte deste  § feito a morte daquele    §§
e um o sopro  §  para todos    §§§
E o importe do homem acima do animal  § não há   §§
pois tudo  §  é névoa-nada

(Qohélet, III, 19. trad. Haroldo de Campos)

21.7.24

Baudelaire: a beleza misteriosa



Il est beaucoup plus commode de déclarer que tout est absolument laid dans l'habit d'une époque, que de s'appliquer à en extraire la beauté mystérieuse, si minime ou si légère qu'elle soit.

(in Le peintre de la vie moderne)


Traduzo:

É bem mais cómodo afirmar que tudo é absolutamente feio nos costumes duma época, que aplicar-se a extrair a beleza misteriosa, ainda que mínima ou ligeira. 


[Baudelaire, caricatura de Giraud].

7.7.24

Joseph Beuys, La rivoluzione siamo Noi, 1972


 

Tate.

Angelica Kauffman, Portrait of Emma, Lady Hamilton, as Muse of Comedy, 1791




O que me inquieta nesta pintura de Kauffman? O que me levou a escolhê-la e não às outras aqui presentes? Que inquietude vai da tela até mim e de mim à tela? O que evidencia esse movimento circular - melhor, essa tensão? O fundo da tela é um reposteiro (uma cortina de cena?) em tons de verde escuro, um verde musgo, e de castanhos - que Emma afasta, como se fosse o princípio de algo. O quê? Da área castanha escura do reposteiro surge, irrompendo aí de uma área cromaticamente oposta, castanha clara, uma máscara grega (talvez greco-latina): a máscara da musa da comédia. E, de novo, a pintura cria um pólo de tensão entre a máscara e o rosto da musa, como se Emma revelasse, por fim, o seu rosto. Mas, Emma revela mais. Num jogo erótico evidente, que o branco da veste acentua, sobressaem as coxas e o peito (que um cinto, tão castanho quanto o castanho do reposteiro e o da máscara, acentua). O sexo, esse, é encoberto por uma écharpe castanha clara - que vai até ao peito, caindo pelas costas até à coxa em primeiro plano. Reposteiro (ou boca de cena?) e écharpe são minuciosamente trabalhadas, encontrando-se na linha que atravessa o sexo - e que as pregas da veste velam e desvelam. E que o rosto absorto, diria mesmo suspenso pelo desejo, desvenda no esgar da máscara, uma máscara adornada pelos louros da conquista,,,

Sandro Boticelli, Vénus e Marte, 1485

 





Apesar de quer as mãos de Vénus, quer as mãos de Marte estarem em descanso, passivas, assim como o pé de Vénus ou as pernas cruzadas de Marte, apesar ainda das tropelias dos faunos (os do fundo divertem-se soprando no ouvido de Marte com uma concha e o do canto inferior direito prepara, também, uma qualquer tropelia), há uma atmosfera activa das duas figuras. Por um lado, o olhar de Vénus transmite a suspensão do desejo, que as posições das mãos e do pé evidenciam, sublinhando, por oposição, a posição da cabeça e a direcção do olhar. Por outro, o absorvimento de Marte no sono pressupõe uma vulnerabilidade contida, que pernas e braços denunciam, como se um gesto fulgurante fosse ser desencadeado, cumprindo o desejo de Vénus, e que irá ficar velado ao espectador...