30.9.25

Caminhos para abolir o eu


Morrendo em finais de oitocentos, Rimbaud (1854-1891) escreve, rodeado de enigmas: «Je est un autre» («Eu é um outro»). E talvez seja este verso que abre exemplarmente para o modernismo. Porquè? Porque anula a subjectividade que atravessa o romantismo (mesmo o pré e o pós). 

Pessoa seguiu este caminho com Álvaro de Campos. Mas, no modernismo português, é Mário de Sá-Carneiro que contagia a sua poesia com esta ambiguidade, melhor, com este manifesto. Se, como dizia Pessoa na linha de Aristóteles, o «poema é um animal», então não há lugar para o eu mas, sim, para o outro. Lá está: «Eu é um outro». Escreve Sá-Carneiro em Indícios de ouro: «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de Intermédio: / Pilar da ponte do tédio / Que vai de mim para o Outro». O termo "Intermédio", a que acresce a metáfora "pilar da ponte do tédio", remete para a suspensão do gesto, que na poesia trovadoresca deriva da dialéctica partir/ficar, mas que aqui tem a ver com o spleen a que Baudelaire faz constante referência: o spleen da vida moderna que, quer ele quer Poe, trouxeram para os seus textos.


Em 2021, Daniel Jonas publica Cães de chuva. O título chama logo a atenção: Cães de chuva leva-me para Cães de palha (1971) de Sam Peckinpah. Sendo um filme onde a fronteira entre vida e morte é extremamente ténue, há três versos que ligam filme e livro: «Um poema / é o fim depois do fim / após a morte, antes da terra» (p. 36). Ou seja: o poema está agora suspenso entre um «fim depois do fim» e uma possível cosmogonia, entre a morte e o «antes da terra». No limite, o poema é aparentemente ilegível, porque não há sequer leitor possível, ou seja, o poema não existe. Daí, lê-se na página 37: «É triste sermos nós até para nós», ou seja, a ipseidade implica a tristeza. 

A questão da ipseidade, do «sermos nós até para nós», atravessou o pós-modernismo. Daniel Jonas, todavia, afasta-se do pós-modernismo. Continuando a ler o poema da página 37 temos a resposta: «É tudo triste em vez de ser só ser». Por outras palavras: o poema é tão-só poema que é sendo, ao ser. Já não o animal de Aristóteles e de Pessoa. Já não a tristeza do romantismo (pré e pós). Apenas é sendo, ao ser. E estamos no romantismo alemão. «Quanto mais poético mais verdadeiro», escreveu Novalis (1772-1801). E estamos, também, diante - apenas diante - do Heidegger que enuncia o poeta como o pastor do ser. 

Daí, Idade da perda (2025). Que também podia ser idade da pedra - o tal «antes da terra» de Cães de chuva, o apontar para uma cosmogonia. E em Idade da perda destaco dois poemas: A unidade da treva (p. 35) e Virá atrás de ti (p. 47), para além de versos esparsos notáveis. Eis um exemplo: «(...) Eu ando sempre atrás de quanto em mim persiste adiante. / Persigo a sombra que a mim faça do futuro, / e ando por andar, longe a longe, errante / de quanto hoje pense e já de si se afaste. / Atrás do que dispense, do que não pense já se exista ou não, / eu sigo pela sombra de mim (...)» (p. 37). Ou, e não resisto a citar na íntegra o poema da página 47, atrás referido:

Virá atrás de ti quem tu te sejas
Aquele que um dia te desejas
(aquele que em ti dentro te ecoa)
A ave nada do ninho da tua palma
(que a sombra de asas também voa)
O punho com que gritas a loucura!
Mas ânimo, ó meditativa alma!
Para ter sombra é preciso ter altura.

Se neste poema o fantasma de Hölderlin (1770-1843) é notório, no excerto anterior o eco é de John Donne (1572-1631), um dos representantes da poesia metafísica inglesa. Todavia, Idade da perda é também atravessado por ecos da poesia trovadoresca, do maneirismo e do barroco. Daí a poesia de Daniel Jonas ser um tecer constante. Ou, apenas a sua memória.




14.9.25

Encontros com Giacometti

Este encontro é um encontro provocado. Chafes interroga a obra de Giacometti, prolongando-a numa linha teórica que é, dado nunca abdicar da sua própria matriz, um confronto, um conflito. Aqui: 

Chafes e Giacometti. Gris, Vide, Cris. Centro de Arte Moderna Gulbenkian, 2023.


Outro encontro com Giacometti, este enquanto desconstrução, até ir ao encontro da estrutura, do esqueleto, é o de Mona Hatoum, em particular a obra Remains of the Day (2016-18).

22.8.25

Jeanne d'Arc (1879)


Jules-Bastien Lepage (França, 1848-1884), The Metropolitan Museum of Art, New York.


Esta é uma daquelas obras de artes visuais que consegue transmitir cabalmente um olhar deveras alucinado e, ao mesmo tempo, deveras apavorado - o que um dos braços, abandonado ao longo do corpo, sublinha. Simultaneamente, como que prolongando o olhar, a disposição da cabeça continua também no braço estendido com a mão ensaiando um gesto de dádiva - que enquanto dádiva é, também, um gesto de ternura que algo na mão (um fruto? uma flor?) indica. Como se dissesse: - "Este é o meu corpo. Tomai-o". Todavia, as árvores, em particular a que lhe está imediatamente atrás, toda retorcida (dois ramos acompanham o movimento do braço e o tronco o movimento do corpo), ou as figuras do lado esquerdo, ao fundo, uma eventual figura de Jeanne d'Arc (que viveu na primeira metade do século XIV) enquanto guerreira, e outras figuras com laivos celestes, alegoria da ascensão de Jeanne, compõem o retrato da figura em primeiro plano. Uma nota final. A oposição passivo/activo percorre a obra de um pintor contemporâneo de Lepage: Courbet, da escola do realismo, de que é o pintor primeiro. Por outro lado, Lepage ainda tem reminiscências bem visíveis do romantismo: todo o fundo da tela, naquilo já referido e no mais que há, caso do tema subjacente do abandono, isto é, entregar-se ao poder dos homens para subir ao encontro do poder da divindade (descer à terra/subir aos céus é uma oposição que se acentua no romantismo).


15.8.25

Pã perseguindo Siringe


Hendrick van Balen, o Velho e um seguidor de Jan Brueghel, o Velho, c. 1615, National Gallery, Londres.

Pã (Pan aproxima-se mais do original grego) persegue Siringe (o mesmo para Syrinx) que, fugindo, é metamorfoseada ao entrar num canavial - uma dessas canas vai ser a flauta de Pã. Cf. Ovídio, Metamorfoses, trad. Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia, Lisboa, 2007, I, 691-705.

Nan Goldin, Young love, 2024


 

Nan Goldin, Stendhal syndrome, in Arles, Les rencontres de la photographie.

10.1.25

A diligência na neve

 


A diligência na neve (1860, National Gallery) remete para a pintura de paisagem de Courbet - e não para a desconstrução que opera da pintura de história 






(caso, por exemplo, de Un enterrement à Ornans (1849-1850) ou de L'atelier du peintre (1854-1855), ambos do Musée d'Orsay). 

Entre a convulsão das nuvens, patente nas cambiantes de negro do céu, em particular no canto superior direito, uma negrura de tempestade, e a convulsão da neve, de um branco sujo e por vezes acinzentado, a diligência tenta abrir caminho para entregar sabe-se lá o quê. Mas que é de uma entrega que se trata, não há a mínima dúvida. Por exemplo: entregar(-se) ao espectador...