letra corrida
| Caderno de trabalho |
23.7.24
Fuinha
21.7.24
Baudelaire: a beleza misteriosa
Il est beaucoup plus commode de déclarer que tout est absolument laid dans l'habit d'une époque, que de s'appliquer à en extraire la beauté mystérieuse, si minime ou si légère qu'elle soit.
(in Le peintre de la vie moderne)
Traduzo:
É bem mais cómodo afirmar que tudo é absolutamente feio nos costumes duma época, que aplicar-se a extrair a beleza misteriosa, ainda que mínima ou ligeira.
[Baudelaire, caricatura de Giraud].
7.7.24
Angelica Kauffman, Portrait of Emma, Lady Hamilton, as Muse of Comedy, 1791
Sandro Boticelli, Vénus e Marte, 1485
14.3.23
Louise Glück: uma introdução e uma tradução
*
Poema
de
mãos dadas como rapaz e rapariga
parando
apenas para comer frutos silvestres de um prato
pintado
com imagens de pássaros.
Escalam
a alta montanha coberta de gelo,
depois
voam para longe. Mas tu e eu
não
fazemos isso –
Escalamos
a mesma montanha;
rezo
para que o vento nos erga
mas
não adianta;
escondeste
a tua cabeça para não
ver o
fim –
Para
baixo e para baixo e para baixo e para baixo
é para
onde o vento nos leva;
tento
animar-te
mas
palavras não são resposta;
canto-te
como a mãe me cantava –
Tens
os olhos fechados. Passamos
pelo
rapaz e pela rapariga que vimos no princípio;
agora
estão de pé numa ponte de madeira;
consigo
ver a sua casa por detrás deles;
perante
a queda desenfreada, eles chamam-nos,
mas
não, o vento está nos nossos ouvidos,
é o
que ouvimos –
E
depois estamos simplesmente a cair –
E o
mundo passa,
todos
os mundos, cada qual mais belo que o anterior;
Toco o
teu rosto para te proteger –
1. Um diário de viagem
Tinha deixado o meu passaporte num motel em que ficamos uma noite
ou coisa que o valha
cujo nome não me conseguia lembrar. Isto foi como tudo começou.
O hotel seguinte não me quis receber,
um belo hotel, num laranjal, com vista para o mar.
Com que naturalidade aceitaste
o quarto que podia ter sido nosso,
e, depois, ficaste todo contente na varanda,
atirando-me bombons. No dia seguinte
retomaste a jornada que íamos fazer juntos.
O porteiro arranjou-me um cobertor velho.
De dia, sentava-me em frente da cozinha. De noite, estendia o cobertor
entre as laranjeiras. Todos os dias o mesmo, excepto o clima.
Dias depois, o pessoal teve pena de mim.
O empregado de mesa trazia-me comida do jantar,
umas batatas ou um naco de cordeiro. Às vezes chegava um
postal ilustrado.
Na frente, luzidias atracções turísticas e obras de arte.
Uma vez, uma montanha coberta de neve. Cerca de um mês depois,
houve um pós-escrito: X manda cumprimentos.
Disse um mês, mas de facto não tinha noção do tempo.
O empregado de mesa desapareceu. Veio um novo, depois um outro,
creio.
De tempos a tempos, um deles havia de se juntar a mim no cobertor.
Gostei desses dias! cada qual igual ao anterior.
Havia os degraus de pedra que subíamos juntos
e a cidadezinha onde tomávamos o pequeno-almoço. Ao longe,
podia ver a enseada onde costumávamos nadar, mas sem nunca mais
ouvir
as crianças chamando-se umas às outras, nem te ouvir
mais perguntando-me se eu queria uma bebida fresca,
que eu queria sempre.
Quando os postais acabaram, li de novo os antigos.
Vi-me em pé debaixo da varanda com aquela chuva
de beijos, incapaz de acreditar que me ias abandonar,
implorando-te, é claro, embora sem palavras –
O porteiro, percebi, tinha estado atrás de mim.
Não fique triste, disse. Iniciou a sua própria jornada,
não no mundo, como o seu amigo, mas em si mesma e nas suas
memórias.
Como elas se vão, talvez alcance
aquele invejável vazio no qual
todas as coisas pairam, como a taça vazia no Daodejin –
Tudo é mudança, disse, e tudo está ligado.
Também tudo regressa, mas o que regressa não é
o que foi embora –
Vimo-la afastar-se. Descer os degraus de pedra
para a cidadezinha. Senti
que algo verdadeiro tinha sido dito
e embora preferisse ter sido eu próprio a dizê-lo
pelo menos fiquei contente por ouvi-lo.
2. A história do passaporte
Eu regressei mas tu não regressaste.
Foi assim:
Um dia um envelope chegou,
com selos de uma pequena república europeia.
O porteiro entregou-mo com ar de grande cerimónia;
tentei abri-lo com o mesmo estado de espírito.
Dentro estava o meu passaporte.
Havia o meu rosto, ou o que tinha sido o meu rosto
nalgum momento, bem no passado.
Mas eu já me tinha separado dele,
aquele rosto sorrindo com tal convicção,
cheio de todas as memórias das nossas viagens juntos
e dos nossos sonhos de outras jornadas –
Atirei-o ao mar.
Afundou-se logo.
Para baixo, para baixo, enquanto continuei
a olhar a água vazia.
Entretanto, o porteiro foi-me observando.
Venha, disse ele, pegando-me no braço. E começamos
a andar à volta do lago, como eu o fazia por hábito diariamente.
Vejo, disse ele, que já não
deseja retomar a sua vida passada
para se orientar, é isso, em linha recta como o tempo
sugere que fazemos, mas sim (aqui ele gesticulou na direção do
lago)
num círculo que aspira a
essa quietude no coração das coisas,
embora eu prefira pensar que também se assemelha a um relógio.
Nesse momento tirou do bolso
o grande relógio que andava sempre consigo. Desafio-a, disse ele,
a dizer, olhando para aqui, se é segunda-feira ou terça.
Mas se olhar para a mão que o segura, aperceber-se-á que já não sou
um rapaz, o meu cabelo tem cãs.
Nem vai ficar admirada ao saber
que foi em tempos escuro, como o seu deve ter sido escuro,
e encaracolado, diria eu.
Com estas considerações, estávamos os dois
a olhar para um grupo de crianças brincando nas poças,
cada corpo rodeado por uma boia.
Vermelho e azul, verde e amarelo,
um arco-íris de crianças chapinhando no lago límpido.
Eu podia ouvir o tique-taque do relógio,
provavelmente aludindo à passagem do tempo
enquanto de facto o anula.
Deve perguntar-se, disse ele, se porventura se ilude.
O que quero dizer é estar a olhar para o relógio e não
para a mão que o segura. Ficámos um pouco a olhar para o lago,
cada um de nós pensando o que nos ocorria.
Mas não é a vida de filósofo
rigorosamente como a descreve, perguntei eu. Ir pelo mesmo caminho,
à espera de se descobrir na verdade.
Mas você deixou para trás o que fazia, disse ele, que é aquilo que
o filósofo faz. Lembra-se de quando manteve o que chamou
o seu diário de viagem? Costumava ler-mo,
lembro-me que tinha histórias de todo o género,
a maior parte histórias de amor e histórias de perda, pontuadas
por detalhes fantásticos que não ocorreriam à maioria,
e ainda ao escutá-los tinha a sensação de estar a ouvir
a minha própria experiência mas contada de um modo mais belo
do que aquele que eu podia ter usado. Senti
que você estava a falar comigo ou sobre mim apesar de eu nunca me ter
afastado de si.
Como se chamava? Um diário de viagem, creio que o disse,
ainda que eu sempre o tenha chamado A negação da morte, a
partir de Ernest Becker.
E você tinha-me dado um nome estranho, lembro-me.
Concierge, disse eu. Concierge foi o
que lhe chamei.
E antes disso, você, que é, creio,
uma convenção na ficção.
Pensamentos nocturnos
Nasci há muito.
Não há mais ninguém vivo
que me recorde como bebé.
Era um bebé bom? Um
mau? Excepto na minha cabeça,
esse debate está agora
silenciado para sempre.
O que molda
um bebé mau, perguntei-me. Cólicas,
disse a minha mãe, o que significava
que chorava muito.
Que mal pode haver
nisso? Como era difícil
estar vivo, não é de admirar
que todos tenham morrido. E quão pequena
devo ter sido, ao ser afagada por ela
acolhendo-me.
Que pena ter-me tornado
palavrosa, sem qualquer ligação
a essa memória. O amor de minha mãe!
Demasiado cedo vim à tona,
eu,
forte mas amarga,
como um relógio despertador.
Uma história sem fim
1.
A meio da frase
ela adormeceu. Tinha estado a contar
uma espécie de fábula sobre
uma jovem que acorda uma manhã
transformada em ave. Tal como a vida,
disse a pessoa ao meu lado. Pergunto-me,
prosseguiu, acha que aqui a nossa amiga
tenciona voar quando acordar?
A sala estava muito calma.
Estávamos ambos a estudá-la; de facto,
todos na sala estavam a estudá-la.
A mim, ela pareceu-me como dantes, embora
a cabeça tivesse descaído sobre o peito; além disso,
tinha boas cores – Parece estar a respirar,
disse o meu vizinho. Não só isso, continuou,
estamos todos nós a respirar nesta sala –
como pode uma história acabar. E ainda,
acrescentou, podemos nunca vir a saber
se a história era para ser
um conto moral ou, quem sabe, uma história de amor,
desde que foi interrompida. Por isso não podemos estar seguros
de ter vivido, até agora, o fim.
Mas quem o viveu, disse ele. Quem o viveu?
2.
Ficamos assim bastante tempo,
bloqueados, pensei para comigo,
como barcos parados pelo mau tempo.
O meu vizinho tinha-se fechado sobre si.
Algo, sentia-o, existia entre nós,
nada tão definitivo como uma criança,
mas, não obstante, real –
Entretanto, ninguém falou.
Ninguém se adiantou a pedir ajuda
ou se ajoelhou ao lado da mulher deitada.
O sol ia-se pondo; as longas sombras dos olmos
alastravam-se como lagos escuros sobre a erva.
Finalmente o meu vizinho levantou a cabeça.
Manifestamente, disse ele, alguém deve acabar esta história
que era, creio, para ter sido
uma história de amor que mulheres tontas contam, levando
muito tempo, carregadas de tangentes e distracções
destinadas a disfarçar o inevitável
tédio da sua credulidade. Mas como, disse,
mudamos de cavaleiros, também podemos mudar
de cavalos. Agora que o conto é meu,
prefiro que seja uma meditação sobre a existência.
A sala ficou muito quieta.
Sei o que pensam, disse; todos desprezamos
histórias que parecem áridas e intermináveis, mas a minha
vai ser uma verdadeira história de amor,
se por amor queremos referir a maneira como amávamos quando éramos
jovens,
como se não houvesse mais tempo algum.
3.
A noite caiu logo. Logo
a luz veio.
No chão, a mulher mexeu-se.
Alguém a tinha coberto com um cobertor
que ela pôs de lado.
É de manhã, disse ela. Tinha-se
apoiado de modo a poder ver
a porta. Havia uma ave, disse.
Alguém deve beijá-la.
Talvez já a tenham beijado, disse o meu vizinho.
Oh não, disse ela. Uma vez beijada
torna-se num ser humano. Portanto não pode voar;
pode apenas sentar-se e ficar de pé e deitar-se.
E beijar, acrescentou o meu vizinho.
Já não, disse ela. Houve apenas uma vez
para quebrar o feitiço que lhe gelou o coração.
Foi uma má troca, disse ela,
as asas pelo beijo.
Olhou para nós, como uma figura no cimo de uma montanha
olhando para baixo, embora fossemos nós os únicos a olhar para
baixo,
de facto. Evidentemente a minha cabeça já não é o que era, disse
ela.
A maior parte do que me foi acontecendo desvaneceu-se, mas certos
princípios implícitos foram naturalmente
expostos com surpreendente clareza.
Os chineses tinham razão, disse, em honrar os velhos.
Olhe-se para nós, disse. Estamos todos nesta sala
ainda à espera de mudar. É por isso que procuramos o amor.
Procurámo-lo toda a nossa vida,
mesmo depois de o ter encontrado.
Louise Glück, Winter Recipes from the Collective, poems, Farrar, Straus and Giroux, NY, 2021. A introdução e a tradução são minhas, José Fernando Guimarães.
7.3.23
Gottfried Benn
Quem
vive só…
Quem vive só vive no mistério,
mantem-se na torrente das
imagens
gerando-se, germinando,
até as sombras trazem o seu
fogo.
Está na gestação de cada sedimento,
cumprido em pensamento e
defendido,
é senhor da destruição
e do humano que sustenta e
acasala.
Sem emoção vê como a terra
mudou desde que se lhe abriu,
nunca mais morte nunca mais
devir:
o que se cumpre olha-o quedo e
fixo.
Gottfried Benn, Poèmes, trad. Pierre Garnier, Gallimard,
Paris, 2010, p. 170. Este poema pertence ao período entre 1922 e 1936. A
tradução é minha, JFG.
17.2.23
Anna Akhmatova
Coragem
Sabemos
o que agora é ambíguo
E o que agora se cumpre.
Os nossos relógios indicam a hora da coragem,
E a
coragem não nos abandonará.
Não aterroriza cair sob as balas.
Nem amarga ficar sem tecto.
E
tomaremos conta de ti, língua russa,
Imensa
palavra russa.
Levar-te-emos
livre e pura,
Legá-la-emos
aos nossos descendentes,
Salvar-te-emos
da reclusão.
Para sempre.
23 fevereiro 1942
Tachkent
Anna Akhmatova, Requiem. Poème sans héros et autres poèmes, trad. Jean-Louis Backès, Poésie / Gallimard, Paris, 2020, p. 213. A tradução é minha, JFG.
12.2.23
Marina Tsvétaeva
Amiga
1.
É feliz? Nunca mo disse.
Talvez seja melhor assim.
Beijou tantos outros –
donde essa tristeza.
Vejo, em si, todas as heroínas
das tragédias de Shakespeare.
Você, infeliz dama, nunca foi
salva por ninguém.
Cresceu no cansaço de repetir
as palavras usuais do amor!
Um anel de ferro numa mão exangue
é mais expressivo.
Amo-a – como uma tempestade que rebenta
por cima da cabeça – devo confessá-lo;
além disso com ferocidade porque você arde
e morde, e acima de tudo
porque as nossas vidas secretas tomam
vários caminhos diversos:
sedução e destino sombrio
são a sua inspiração.
A si, meu aquilino demónio,
peço desculpa. Num clarão –
como se sobre o caixão – percebi
que sempre fora demasiado tarde para a salvar.
Até tremendo – talvez
sonhe – aí
persiste uma ironia encantadora:
para si, não para ele.
(16 Outubro 1914)
Nota: este ciclo de poemas amorosos, intitulado Podruga (Amiga), remete para a breve ligação amorosa entre Marina Tsvétaeva (1892-1941) e Sophia (Sonya) Parnok (1885-1933), poeta, jornalista, tradutora. Sigo a tradução de Elaine Feinstein (Bride of Ice. Select poems, Carcanet Classics, Manchester, 2023) depois de a confrontar com a edição de Zéno Bianu (Insomnie et autres poèmes, Poésie / Gallimard, Paris, 2013), obra de vários tradutores.
8.2.23
Ingeborg Bachmann
«Eu.»
[…]
2.
A
escravidão, não a suporto
Eu sou
sempre eu
Algo
quer vergar-me
Prefiro
quebrar.
Venha
a rudeza da sorte
Ou do
poder humano
Eis-me,
sou assim, fico
E fico
assim até às minhas últimas forças.
É por
isso que eu sou sempre apenas um
Eu sou
sempre eu
Se me ergo,
ergo-me demasiado alto
Se
caio, caio por inteiro.
Ingeborg Bachmann, Toute
personne qui tombe a des ailes (Poèmes 1942-67), ed. bilingue, trad. Françoise Rétif, Poésie
/ Gallimard, Paris, 2015, p. 45. A tradução é minha, JFG.
Safo
«Morrer é um mal.
Assim o julgaram os deuses.
Porque morriam.»
{Safo nasceu c. 612 a.C].
Sapphô, Odes et fragments, ed. bilingue, trad. Yves Battistini, Poésie / Gallimard, Paris, 2021, [201]. A tradução é minha, JFG.