Morrendo em finais de oitocentos, Rimbaud (1854-1891) escreve, rodeado de enigmas: «Je est un autre» («Eu é um outro»). E talvez seja este verso que abre exemplarmente para o modernismo. Porquè? Porque anula a subjectividade que atravessa o romantismo (mesmo o pré e o pós).
Pessoa seguiu este caminho com Álvaro de Campos. Mas, no modernismo português, é Mário de Sá-Carneiro que contagia a sua poesia com esta ambiguidade, melhor, com este manifesto. Se, como dizia Pessoa na linha de Aristóteles, o «poema é um animal», então não há lugar para o eu mas, sim, para o outro. Lá está: «Eu é um outro». Escreve Sá-Carneiro em Indícios de ouro: «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de Intermédio: / Pilar da ponte do tédio / Que vai de mim para o Outro». O termo "Intermédio", a que acresce a metáfora "pilar da ponte", remete para a suspensão do gesto, que na poesia trovadoresca deriva da dialéctica partir/ficar, mas que aqui tem a ver com o spleen a que Baudelaire faz constante referência: o spleen da vida moderna que, quer ele quer Poe, trouxeram para os seus textos.
Em 2021, Daniel Jonas publica Cães de chuva. O título chama logo a atenção: Cães de chuva leva-me para Cães de palha (1971) de Sam Peckinpah. Sendo um filme onde a fronteira entre vida e morte é extremamente ténue, há três versos que ligam filme e livro: «Um poema / é o fim depois do fim / após a morte, antes da terra» (p. 36). Ou seja: o poema está agora suspenso entre um «fim depois do fim» e uma cosmogonia, entre a morte e o «antes da terra». No limite, o poema é aparentemente ilegível, porque não há sequer leitor possível, ou seja, o poema não existe. Daí, lê-se na página 37: «É triste sermos nós até para nós», ou seja, a ipseidade implica a tristeza.
A questão da ipseidade, do «sermos nós até para nós», atravessou o pós-modernismo. Daniel Jonas afasta-se do pós-modernismo. Continuando a ler o poema da página 37 temos a resposta: «É tudo triste em vez de ser só ser». Por outras palavras: o poema é tão-só poema que é sendo, ao ser. Já não o animal de Aristóteles e de Pessoa. Já não a tristeza do romantismo (pré e pós). Apenas é sendo, ao ser. E estamos no romantismo alemão. «Quanto mais poético mais verdadeiro», escreveu Novalis (1772-1801).
Daí, Idade da perda (2025). Que também podia ser idade da pedra - o tal «antes da terra» de Cães de chuva, o apontar para uma cosmogonia. E em Idade da perda destaco dois poemas: A unidade da treva (p. 35) e Virá atrás de ti (p. 47), para além de versos esparsos notáveis. Eis um exemplo: «(...) Eu ando sempre atrás de quanto em mim persiste adiante. / Persigo a sombra que a mim faça do futuro, / e ando por andar, longe a longe, errante / de quanto hoje pense e já de si se afaste. / Atrás do que dispense, do que não pense já se exista ou não, / eu sigo pela sombra de mim (...)» (p. 37). Ou, e não resisto a citar na íntegra o poema da página 47, atrás referido:
Virá atrás de ti quem tu te sejas
Aquele que um dia te desejas
(aquele que em ti dentro te ecoa)
A ave nada do ninho da tua palma
(que a sombra de asas também voa)
O punho com que gritas a loucura!
Mas ânimo, ó meditativa alma!
Para ter sombra é preciso ter altura.
Se neste poema o fantasma de Hölderlin (1770-1843) é notório, no excerto anterior o eco é de John Donne (1572-1631), um dos representantes da poesia metafísica inglesa. Todavia, Idade da perda é também atravessado por ecos da poesia trovadoresca e do maneirismo. E, além do mais, é um livro que agarra o leitor de poesia.