23.12.15

Da "democracia"


Eis o revisionismo da história. Eis o revisionismo operado pela história. Como o fez Estaline, por exemplo. Aqui, neste caso, apaga-se um título académico (doutor honoris causa) que o nome (Konrad Lorenz - o etólogo) transporta. Aqui, neste caso, apaga-se o nome que um título académico transporta. E as consciências democráticas, se é que as há, ficam tranquilas, pacificadas. Ao apagarem, também, o colaboracionismo das universidades alemãs, neste caso Salzburgo, com o nazismo. Mas, este lavar de mãos é um im-possível. E esta purificação levada a cabo pela democracia, se é que a há, evoca o próprio gesto fundador do nazismo. Razão tem o dito de Marx: a história repete-se como farsa.

4.11.15

2. Da paisagem à abstracção

A série Puits noir de Courbet, de que Le ruisseau noir (1865)



é um exemplo, inicia a transição da paisagem para a abstracção. A série dos nenúfares


de Monet também o faz - como a série das medas de feno ou da catedral de Rouen, também de Monet. Mas, pergunta-se: a paisagem não continua em Courbet e em Monet a ser paisagem? Em Courbet, por exemplo: não há um diálogo, em Le ruisseau noir, entre a água e o céu, sendo as árvores e as rochas o enquadramento que leva à negrura da gruta? Em Monet, por exemplo: não vive a série dos nenúfares, a das medas de feno, a da catedral de Rouen da luz, no lógica interna do impressionismo? A resposta à pergunta, tal como foi formulada, é um sim. Todavia, um sim com reservas. Comparem-se as obras referidas de Courbet e de Monet com este Cézanne,


o Cézanne de Mont Sainte-Victoire (1902-1906) - sobre o qual há um belo livro de Peter Handke. Paisagem ou abstracção? Como em Courbet, em Monet, mas ainda mais em Cézanne, eu diria a caminho da abstracção. Não se esqueça, aliás, que se Cézanne abriu à abstracção (compare-se as três pinturas intituladas Les grandes baigneuses de Cézanne com Les Demoiselles d'Avignon de Picasso, uma obra radical que abre ao cubismo, apesar de, diz-se, Picasso a achar inacabada), van Gogh abriu à expressão e Gauguin à cor. Eis o(s) movimento(s) nas artes visuais.

3.11.15

1. Da pintura de história ao realismo



La Mort de Sardanapale (1827), de Delacroix, é um dos exemplos maiores da pintura de história - com o orientalismo próprio do romantismo. Todavia, ao ver esta obra, logo outra, anterior, ecoa: Le Radeau de la Méduse (1819), de Géricault. Aliás, a morte, o desastre, o desespero espreitam numa e noutra das obras. Ou nesta: Le 28 Juillet: La liberté guidant le peuple (1831), também de Delacroix. É claro que no neo-classicismo a pintura de história é mais acentuada, caso de Le Sacre ou le Couronnement (1806-1807), de David. Todavia, há uma outra pintura de David que troca um pouco as voltas: La Mort de Marat (1793), pertença de Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique. De facto, a multiplicidade de figuras na pintura de história, donde vem, aliás, a tensão, o conflito, dá lugar, aqui, a uma única figura: Marat, onde se concentra toda a tensão, todo o conflito (o corpo inclinado, um braço pendente com a pena de escrever, uma mão segurando uma carta, a oposição entre os tecidos, os vários brancos e o verde).


Por isso, é curioso aproximar duas obras: La Mort de Marat de David e La Liberté guidant le peuple de Delacroix. Ambas falam, à sua maneira, do heroismo, de um heroismo trágico.

Quem vai fazer eclodir a pintura de história é Courbet, o realismo de Courbet. E a obra radical é esta.



L'origine du monde (1866), um torso feminino, é a ruptura que o realismo de Courbet faz com neo-classicismo e romantismo, abrindo a Manet, ao modernismo de Manet. Esta é, portanto, a obra radical de oitocentos. Duas outras obras de Courbet há, todavia, que evidenciam a ruptura com a pintura de história. Uma é Un enterrement à Ornans, 1849-1850. A outra é L'atelier du peintre, 1854-1855. Numa, há um enterro com camponeses. Na outra, o conjunto tela, pintor, mulher, criança, tecido branco, cão branco divide a tela: de um lado, o esquerdo, figuras do campo; do outro, o direito, figuras da cidade, intelectuais - com Baudelaire em primeiro plano, a ler. Para trás ficam as figuras históricas. Agora, tudo é quotidiano. Como escreve, aliás, Baudelaire em Le peintre de la vie moderne...

13.4.15

Ruy Cinatti: sete inéditos (?) (4)


Nota: os poemas Petição e Opção não são inéditos; também figuram, com alterações, em 56 poemas, pp. 62 e 23, respectivamente. As alterações são as seguintes: no primeiro passa a haver duas estrofes, com início em «Guarda-me a mim», aberto numa e noutra estrofe por travessão; no segundo, as «japonesices de Outono» passam a «japonesices de Inverno». Restam, assim, em sete poemas, dois poemas aparentemente inéditos. De notar que estes poemas, os inéditos e os não inéditos, retomam globalmente a poética de Nós não somos deste mundo (1941), Anoitecendo a vida recomeça (1942), O livro do nómada meu amigo (1958), e que vai inflectir para outras vertentes a partir de Sete septetos (1967).

10.4.15

9.4.15

Ruy Cinatti: sete inéditos (?) (1)


Inicio a publicação de sete inéditos (?) de Ruy Cinatti - todos datados de Novembro de 1976, entre os dias 5 e 8. Entretanto, devo ao Rui Morão uma palavra de agradecimento por me ter confiado estes poemas.

Coloco a palavra inéditos com uma interrogação não se vá dar o caso de terem surgido nalguma publicação, nesta ou noutra forma. Todavia, nesta altura, era prática de Ruy Cinatti divulgar os seus poemas em folhas volantes - e, certamente, nem todas essas folhas volantes terão sido reunidas.

Nota: este poema não é inédito; foi publicado, sem alterações, em 56 poemas, Regra do Jogo ed.,  Lisboa, 1981, p. 42.

13.1.15

O alfaiate


O alfaiate, Il Tagliapanni, 1565-1570, de Giovanni Battista Moroni, pertença da National Gallery, Londres, é uma daquelas obras que prende a atenção. Há, aqui, todas as regras do retrato, tal como concebido até setecentos. A inclinação da cabeça e o olhar atravessam a pintura numa diagonal que o vértice de cores do fundo da tela acentua: um cinzento carregado, quase negro, cria o lado de um vértice que ocupa o lado direito, onde um cinzento mais claro vai gradualmente escurecendo de cima para baixo, sem atingir o tom de penumbra do lado esquerdo. Repare-se, ainda, como a cabeça da figura está no lado mais claro, enquanto o corpo, também na mesma diagonal criada pela cabeça e pelo olhar, como que irrompe do lado mais escuro - veja-se a mancha de sombra no ombro do lado direito, que vai descendo pela manga. Depois, as mãos. Como desde Caravaggio a Courbet, uma é passiva e a outra activa. A mão do lado direito, ainda que segurando o tecido, o negro do tecido, quase parece em abandono. Pelo contrário, a outra mão, contraída na tesoura aberta, indica que toda a pintura é um gesto em suspenso na outra diagonal que a mesa instaura - a diagonal que, por assim dizer, fecha a diagonal instituída pela cabeça e pelo olhar, a diagonal que com a diagonal do braço direito cria um centro. Tudo é, assim, interior, interior à pintura: a mesa de trabalho, as mãos, o olhar. Ainda que este nos seja dirigido...

9.1.15

O pintassilgo


O pintassilgo, de Carel Fabritius (1622-1654), datado do último ano da vida do pintor, e pertença do Mauritshuis, Holanda, é a única obra que restou de uma explosão no atelier do pintor, em Delft, e que o matou - como o conta Donna Tartt no romance homónimo. 

Todavia, não é isto o que me interessa. Antes de mais, na vanitas, na natureza-morta, um género de pintura em que se pode inserir O pintassilgo, o tema da reclusão é inusual. Porque é disso mesmo que se trata. Uma ave acorrentada - cuja figura melancólica do voo está adiada para sempre. Ou seja: ainda que vivo, o pintassilgo é, de facto, uma natureza-morta. O pintassilgo é um morto-vivo - como a enorme mancha de sombra na parede confirma, a ponto de confundir, melhor, identificar a ave e o poleiro, a ave e o cativeiro.

Não perdendo a pintura de vista (caso da postura da cabeça da ave, como nos retratos e auto-retratos de figuras humanas até finais de setecentos; caso das manchas de óleo, algumas feitas com espátula, bem marcadas nas asas, sinal da tal figura melancólica do voo adiado; caso da argola e da corrente que  prende o pintassilgo na pata, num plano simétrico ao da inclinação da figura da ave; caso das grades do poleiro, no mesmo tom, ainda que mais vivo, do corpo da ave; caso do cinzento neutro, um cinzento de morte, do poleiro, e que, por isso mesmo, se impõe ao olhar do espectador em contraponto com um bebedouro esfumado, difuso, como se a ave estivesse morta, melhor, como se a ave fosse um animal empalhado; caso da figura da ave, como que querendo sair do cativeiro e, ao mesmo tempo, resignada à sua reclusão; caso do fundo da pintura, uma espécie de parede bolorenta), creio que O pintassilgo é a imagem deslumbrante e terrífica do homem e da sua historicidade, a que nos habita e a que nos habitou. Ou, se preferirmos, é nos dias de hoje, como o terá sido na altura num plano político diverso (a assinatura do pintor parece dizer que se trata de um auto-retrato), é nos dias de hoje, dizia, a imagem deslumbrante e terrífica da cidadania e da democracia.