31.1.16

A-vir

«Vivemos com os mortos», escreve Jean-Luc Nancy nas páginas finais de L'expérience de la liberté (Galilée, Paris, 1988). Ora, o que Nancy quer dizer é isto: a Shoah, mas também o Gulag, o nazismo, mas também o estalinismo e os fascismos, indicam o terror da liberdade, indicam a liberdade como terror, indicam a liberdade do mal, a «banalidade do mal» no dito de Hannah Arendt. Daí, no dito de Adorno, que mais tarde apagou, ser impossível escrever depois de Auschwitz. O que é que este dito de Adorno quer dizer? Depois de Auschwitz, não há testemunho. É impossível testemunhar Auschwitz. Auschwitz é a liberdade do mal que corrói a própria liberdade e, assim, o infinito finito da existência, da ek-sistência. Auschwitz é a liberdade do mal que destrói a própria liberdade e, ao mesmo tempo, o infinito finito da ek-sistência. Mais radicalmente, e no meu dizer: Auschwitz apaga a ek-sistência. E ao apagar a ek-sistência, apaga a  abertura ao aí do ser, a abertura ao Da do sein (Heidegger). Assim, apagar a abertura do ser-aí é apagar o espanto perante o aberto (note-se que não há espanto na liberdade como terror, há, isso sim, cinzas). Assim, apagar a abertura do ser-aí é o retirar-se do ser, a sua ocultação.

Por outro lado, o enunciado «Vivemos com os mortos» subtrai-se a qualquer subjectividade. Não sou eu, nem tu, nem ele, nem vós, nem eles que vivemos com os mortos. Somos nós. E, sendo nós, é de uma comunidade que se trata. É uma comunidade-a-vir. É uma democracia-a-vir. É uma comunidade-a-vir, uma democracia-a-vir onde o a-vir é o ainda-não-do-já, nas palavras de Heidegger sobre o ser, que são aqui, contudo, as palavras sobre a liberdade. Porque a liberdade é um a-vir, é uma dádiva, é uma oferenda. A liberdade dá-se na ek-sistência. Por isso mesmo, a ek-sistência é um infinito finito.